Os fantasmas de Ellen Glasgow ainda assombram, por Lívia Milanez

Ao produzir sua literatura entre o final do século XIX e o começo do século XX, a norte-americana Ellen Glasgow (1873-1945) vivia em um contexto literário e cultural mais parecido com o contexto atual do que se poderia pensar em um primeiro momento.

Em termos literários, os escritores da época de Glasgow, tanto quanto os atuais, conviviam com o dilema de divulgar o próprio nome no maior número possível de veículos, ao mesmo tempo que tentavam demonstrar uma produção consistente. Para ser reconhecida como uma profissional da escrita, Ellen Glasgow publicava seus contos em revistas de ampla circulação, muitas conhecidas até hoje, como Good Housekeeping, Harper’s Magazine e Saturday Evening Post mas, ao mesmo tempo, tentava atender às recomendações de um de seus editores, Walter Hines Page, que, em uma carta de dezembro de 1897, criticava a frequência com que escritores prejudicavam suas reputações por publicarem “aqui e ali”, gerando nos leitores a percepção de se tratar de “operários da escrita”, e não de escritores preocupados em construir uma grande obra. Para evitar incorrer na fama de autora menor, Glasgow chegara a se comprometer, em carta ao editor, a não publicar mais contos e a tornar-se “uma grande romancista ou nada”[1]. Houve, porém, uma contradição entre a promessa feita ao editor e a realidade. Glasgow publicou inúmeros contos ao longo de sua carreira literária, os quais sobreviveram ao tempo devido à sua qualidade e à reabilitação do conto como gênero literário de grande valor intrínseco. Apesar de sua participação em revistas populares, a autora consolidou-se, em conformidade com sua promessa a Page, como romancista (publicou quase vinte romances), mas os textos curtos serviram para aferir o interesse do público e escrever ao gosto dele. Como resultado, sua obra obteve reconhecimento acadêmico e popular.

Glasgow foi uma escritora profissional no melhor sentido da expressão, pois revisava constantemente o próprio trabalho e, ao mesmo tempo, procurava escrever o que o leitor não erudito de sua época queria ler. Apesar de levar em consideração as recomendações de seus editores, preocupados com a reputação da autora a longo prazo, Glasgow entendia que seu maior compromisso era com o público. Ela escrevia o que se queria ler e foi precursora de uma linhagem de autores populares que chega hoje a nomes como Stephen King, cujos suspenses fantásticos, à semelhança dos textos de Glasgow nesta coletânea, também são povoados por fantasmas e personagens atormentados pelas próprias memórias. O estilo de Ellen Glasgow, afinal de contas, persiste até hoje e goza de bastante popularidade. Ler seus textos é uma oportunidade para localizar as influências dos best sellers contemporâneos e para tentar entender por que a sociedade de massas é mais sensível a determinadas temáticas do que a outras.

Quanto ao contexto cultural, os textos de Ellen Glasgow nesta coletânea expressam   descrença frente ao cientificismo de sua época, trazendo uma visão crítica quanto às explicações meramente materiais para os fenômenos psíquicos. Entre os personagens destes quatro contos, indivíduos apresentados como céticos e racionalistas são confrontados com os limites de suas próprias percepções. Nestes textos, não existe sobrenatural; em vez disso, há, isto sim, uma nova camada de realidade, que precisa ser incorporada à compreensão dos indivíduos para que estes sobrevivam às próprias experiências. O mágico e o mundano confundem-se para trazer novo ânimo a um século que, ao tempo da primeira publicação de alguns dos contos, já conhecia a luz elétrica, o automóvel e a Grande Guerra, mas ainda era permeado pelo ruralismo sulista dos Estados Unidos. Glasgow oferece a seus leitores um refúgio contra o materialismo simplista do cotidiano em suas ambientações agrárias, ainda que decadentes, como as mansões de “O Quinhão dos Dare” e do conto “A mansão das inconfidências”, ou a casa das Folhas Sussurantes, do conto “A mensagem”.

De maneira mais abrangente, estes textos, sobretudo “O terceiro andar sombrio” e “A mansão das inconfidências”, contextualizam-se no período de surgimento do espiritualismo, caracterizado pela tentativa de explicar cientificamente fenômenos que anteriormente eram explicados de forma mística. Em semelhança à época destes contos, até hoje se tenta conciliar a ciência com o imponderável, em uma tentativa de explicar os velhos medos humanos (como a loucura, a traição e a morte) em uma linguagem contemporânea, para que o indivíduo sinta-se compreendido em sua própria época. Os porta-vozes do misticismo contemporâneo constantemente recorrem a supostas explicações da física quântica, do mesmo modo como os personagens de Glasgow buscavam uma explicação racional para suas visões de fantasmas.

Também à semelhança com a atualidade, estes trabalhos de Glasgow demonstram a obsessão do começo do século XX com a saúde mental, à época tratada com a ameça de internação psiquiátrica e até hoje um assunto de grande preocupação coletiva. Nestes contos, um dos fantasmas a rondar os personagens é o medo da insanidade. Enfermeiras, médicos, tratamentos e hospitais permeiam estas páginas, indicando uma neurose social que ainda existe. Em vez de sucumbir a possíveis diagnósticos, contudo, os personagens de Glasgow tentam adaptar-se a suas novas percepções, mais uma vez indicando a recusa em acatar, sem resistência, explicações estritamente racionalistas.

Um outro fantasma presente na obra de Ellen Glasgow, como na atualidade, é o racismo,  conforme trechos de “O terceiro andar sombrio” e todo o conto “A mensagem”. Cabe perguntar quanto a literatura e a sociedade de hoje, especificamente a brasileira, diferem da época de Glasgow. Embora haja maior consciência contra o racismo, censos literários ainda apontam pouca presença relativa de autores e protagonistas que expressem a complexidade do indivíduo negro[2], o qual, no trabalho de Glasgow, é apenas parte de uma coletividade indistinta e associada a pouca sofisticação intelectual. Apesar desta crítica, a discussão sobre o racismo pessoal de Glasgow é inócua se comparada à discussão maior sobre o racismo da sociedade para a qual ela escrevia e que não é muito diferente da nossa, apesar da distância geográfica e do tempo transcorrido da primeira publicacação destes contos até hoje.

O leitor ficará surpreso com a semelhança entre os textos de Glasgow, alguns escritos há quase um século, e os dias atuais. Apesar de o cenário dos contos variar entre o fim do século do XIX e o começo do século XX, em mansões citadinas e casas de campo norte-americanas, os habitantes dessas épocas e lugares têm as mesmas angústias e inquietações que nós temos. Como uma das personagens de “O terceiro andar sombrio”, também tememos denunciar nossa própria loucura. Como os moradores de “A mansão das inconfidências”, nos questionamos se nossos fantasmas são pessoas ou memórias. Do mesmo modo que a protagonista de “O passado”, por vezes sentimos a necessidade de atribuir um novo significado a nossas lembranças e, por fim, talvez sejamos todos como o garotinho de “A mensagem”, à procura de proteção e segurança em uma realidade que nem sempre nos agrada.

Lívia Milanez

Brasília, maio de 2018

[1]Esta troca de cartas entre Glasgow e seu editor, Page, é mencionada na introdução de Richard K. Meeker à obra The Collected Stories of Ellen Glasgow, de 1963.

[2]A pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, coordenada pela professora Regina Dalcastagné, demonstrou, em 2013, que 72,7% dos autores brasileiros são homens brancos que escrevem sobre a vida nas metrópoles a partir da perspectiva da classe média.

 

Este texto foi reproduzido exatamente como está no prefácio do livro O terceiro andar sombrio: e outras histórias de fantasma (2018), de Ellen Glasgow, traduzida por Luiz Antônio Gusmão, e pode ser comprado em versão impressa e e-book aqui.

 

Lívia Milanez é autora do romance Fermentação (classificado em 3º lugar na Bolsa de Fomento à Literatura do Ministério da Cultura), no qual aborda a temática trans e as migrações, que fazem parte de seu projeto “Desconforto com o corpo e com o território”. No mesmo projeto, estão incluídos os contos Coolie (Amazon) e Um caule de mogno (parte da coletânea Novena para pecar em paz, editora Penalux). É também revisora e tradutora e escreveu o Prefácio de O terceiro andar sombrio, tradução de Luiz Antônio Gusmão para a obra da escritora norte-americana Ellen Glasgow.

 

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