Fragmentos de “Os elétrons (não) são todos iguais”, de Rosmarie Waldrop, por Marcelo Lotufo

    Os fragmentos a seguir são parte do poema “Os elétrons (não) são todos iguais”, de Rosmarie Waldrop, publicados no pequeno volume “Os elétrons (não) são todos iguais e outros poemas”, livro com 4 sequências de poemas em prosa da autora, recém-lançado pelas Edições Jabuticaba. Rosmarie, uma poeta bastante conhecida nos Estados Unidos, ainda é pouco lida no Brasil. As suas preocupações, entretanto, são de bastante interesse para o/a leitor/a Brasileiro/a. Destaco, por exemplo, suas reflexões sobre o deslocamento entre a Europa e a América, e as camadas formadas por esta longa história em nossa língua, nossos corpos e nossas cidades. Nascida na Alemanha, Rosmarie emigrou já adulta para os Estados Unidos, onde passou a usar o inglês como sua língua literária, além de se dedicar à tradução de poetas alemães e franceses. Em mais de cinquenta anos de carreira, traduziu e editou poetas como Paul Celan, Emmanuel Hocquard e Edmond Jabès. Assim, deslocamentos não são somente um problema literário, mas fazem parte da sua vida, sempre entre continentes e línguas. Na maioria de seus textos, Rosmarie parte de algum outro texto para elaborar suas próprias reflexões, seja de um livro sobre a viagem de Colombo à América, ou o pensamento e a música de John Cage. Estes textos são sempre ponto de partida para a autora pensar sua própria escrita e seu lugar de enunciação, além, claro, dos limites e possibilidades da sua própria poesia. Como método, partir de outros textos também impõe o ritmo do estudo à sua escrita; a sua poesia precisa ser lida e relida com paciência, coisa cada vez mais rara em um mundo onde até a própria literatura tem se moldado à lógica das redes sociais e seus posts efêmeros. Questionar o passo da nossa escrita e leitura é, em si, um ato de resistência — é preciso sempre tempo para amadurecer e pensar. Por fim, vale ressaltar que ao sobrepor diferentes camadas históricas, línguas e textos em seus poemas, a escritora busca torcer a linguagem, inventando pontuações e construções que nem sempre são óbvias. Para o/a tradutor/a, este acaba sendo um curioso desafio. Como inscrever no português um inglês que muitas vezes se distancia sintaticamente do próprio inglês?

      Espero que estes quatro fragmentos, escolhidos dentre oito de um mesmo poema, sejam um convite para pensarmos junto de Rosmarie Waldrop e conhecermos uma poeta que tem muito a iluminar no debate poético brasileiro.

 

Os elétrons (não) são todos iguais

1

A vista do mar é o começo da jornada. Uma imagem de Colombo, surgindo do abismo, entra no hemisfério esquerdo. Uma inesperada profusão de línguas. Bolhas, banhas, balela. Meu pai perturbava-se por traços de Babel e pela multiplicação em sua tabuada. Temia que uma sobrecarga de neurônios ativados simultaneamente levasse a uma convulsão epiléptica. A atenção dos navegantes, como a base de um caramujo, prendia-se nas tábuas do navio sem comunicar-se com elas. Concentrados demais no fato físico, nas baleias e no balançar do barco, ou em flechas envenenadas. Mais tarde, entretanto, verteriam histórias jamais imaginadas pelos nativos. Como se línguas fossem sequestradas com a mesma facilidade com que terras verde escuras em profusão de flores.

1

A view of the sea is the beginning of the journey. An image of Columbus, starting out from the abyss, enters the left hemisphere. Profusion of languages out of the blue. Bluster, blur, blubber. My father was troubled by inklings of Babel and multiplication on his table. Afraid that an overload of simultaneous neural firings would result in an epileptic convulsion. The explorers’ attention, like the foot of a snail, held on to the planks of their vessels, not communicating. Too intent on the physical fact, waves, whales, or poison arrows. Later, though, poured forth stories never dreamed of by the natives. As if languages were kidnapped as easily as green shady land profuse of flowers.

2

Assim como Dante seguiu Virgílio, fez Colombo com Marco Polo. Naqueles tempos, a primavera precedia o verão, mas o mundo não era redondo nem infinito. Observações reais serviram para confirmar o que ele já sabia. Verdade, vergas, cola, e dedais, enfileirados até o mastro. Se não fossem suficientes, ele revirava seus olhos, duplicando o movimento dos corpos celestes. Como se não houvesse transmissão de impulso de uma célula para outra. Consertos são difíceis, de natureza intricada e duvidosa, como quando uma frincha aparece entre duas tábuas ou quando o fio que deveria te puxar através do labirinto se rompe. O que significa? ele perguntou. A temperatura da mão ou fato que segurava um cetro? Faz parte da natureza da mente tentar estender-se ao futuro, tentar antecipar eventos prestes a acontecer? Bailado, acaso, toda a tripulação ao convés. E, mesmo que eu não entenda suas línguas, sei que seu rei me ofereceu sua ilha para ser minha.

2

As Dante followed Virgil, so Columbus, Marco Polo. In those days spring came before summer, but the world was neither round nor infinite. Actual observations served to confirm what he already knew. True, clue, loop and thimbles, line up to the mast. If they did not, he rolled his eyeballs, duplicating the movement of the heavenly bodies. As if there were no transmission of impulse from cell to cell. Repair work is hard, of doubtful and intricate nature, as when a gap appears between two planks or the yarn breaks that was to haul you through the maze. What signifies? he asked. The temperature of the hand or that it held a scepter? Is it the nature of the mind to reach toward the future, to anticipate events about to happen? Stance, chance, all hands on deck. And though I do not understand their language yet I know their king offered me his island for mine own.

4

Pigafetta nas Filipinas. Antonio, a exceção. Entre tubarões e mastros quebrados apontou seu lápis. Pois sem ter aprendido uma língua, pode um homem ter memória? Apontou para partes do corpo e formou um corpo de palavras: samput, paha, bassag bassag, nádega, coxa, calcanhar, ‘vergonhas’, utin e bilat, assim como gengibre, alho, canela. Os nativos fitaram o documento. Sem piscar. Tentando, meu pai pensava, distinguir o corpo do pergaminho, das manchas de tinta, em vez de distinguir título, preâmbulo e apêndices. Talvez até bastante incomodados por dúvidas. O ar escaldante pode refutar relações gramaticais tanto quanto o movimento de Vicenza à Mactan, ainda que a velocidade dos sinais nervosos aumente se o organismo se aquecer, e a criatura ficar excitada, talvez delirante. No entanto, no caso de um objeto nunca visto em nossa terra natal, qual utilidade teria uma palavra? Você precisa trazer a própria coisa e esvaziar a sua bolsa para iniciar uma conversa.

4

Pigafetta in the Philippines. Antonio, the exception. Amid sharks and shattered masts sharpened his pencil. For if a man has not learned a language can he have memories? Pointed at parts of the body and shaped a body of words: samput, paha, bassag bassag, buttock, thigh, shank, the “shameful” parts, utin and bilat, as well as ginger, garlic, cinnamon. The natives stared at the document. Unblinking. Trying, my father though, to distinguish its parchment body from blemishes in ink rather than title, preamble, or appendices. Perhaps rather troubled with doubt. Scorching air may refute grammatical relationship as much as movement from Vicenza to Mactan, though the speed of nerve signals increases if the organism gets warm, and the creature becomes excited, perhaps delirious. Yet when an object has never been seen back home what good is a word? You have to bring the thing itself and empty your bag to make conversation.

8

A história das descobertas é a sua história de armadilhas, enganos, dor constante. De um jogo viciado. Resultado semelhante ao reflexo de nuvens no gelo. E uma vez que ele regressou ao continente do pretérito perfeito, do reino da incerteza: o que Colombo tinha encontrado? Para Fernando e Isabela que gostariam de viajar às Índias? Um punhado de ilhas na costa da China, pedrinhas vulgares que um cachorro poderia roer em um dia de calor. Mas pérolas no lugar dos olhos que veem seu leme contornar uma terra redonda que gira em seu próprio eixo como uma roleta da sorte na qual são quebrados muito mais que braços e pernas. Diafragma, frenesi, frenético, frenologia (em descrédito) e esquizofrenia. E na página seguinte, diz meu pai, um muro ainda é um muro, mas rios de crocodilos ampliam a paisagem.

8

The history of discoveries is his story of traps, mishaps, constant hurt. Of loaded dice. Outcome like reflection of clouds on ice. And once he set foot back on the continent of the past tense, the kingdom of certainty: what had Columbus found? For Ferdinand and Isabella who hoped to travel to the Indies? A packet of islands off China, vulgar pebbles a dog might worry in hot weather. Though pearls for eyes that see his steering wheel environ a round earth turning on its axis like a wheel of fortune on which more than limbs are broken. The rhythm of the midriff so closely linked to vapors of the mind. Diaphragm, frenzy, frantic, phrenology (discredited), and schizophrenia. And on the next page, my father says, a wall is still a wall, but rivers and crocodiles enlarge the landscape.

Marcelo Lotufo é doutor em Literatura Comparada pela Univ. de Brown e atualmente trabalha como editor e tradutor nas Edições Jabuticaba. Já publicou artigos, ensaios, contos e entrevistas em diversos periódicos acadêmicos, em blogs de cultura, no Jornal Rascunho e no Suplemente Literário Pernambuco.

Deixe um comentário